quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Foi Kurosawa quem me disse...


“Há muito tempo atrás, ao chegar num pequeno vilarejo, um viajante que estava doente morreu perto da ponte. Os aldeões ficaram com pena e o enterraram ali mesmo. Puseram uma grande pedra sobre o túmulo e depositaram flores sobre ela. Pôr flores ali tornou-se então um costume. Não apenas as crianças, mas todos os aldeões passaram a pôr flores ao passar pela pedra, embora a maioria não saiba sequer por que o faz.”

Akira Kurosawa – Yume (Dreams)


A narrativa acima aparece no filme Yume de Akira Kurosawa, um filme que cujo roteiro é baseado numa série de sonhos marcantes que o autor teve ao longo de sua vida e, esta história em especial me chamou muito a atenção, pois nela podemos encontrar claramente um contexto no qual eu, tu que estás lendo este texto e todos os outros moradores desta esfera esfumaçada em que vivemos têm inserido no seu “modus vivendi” como se fosse um chip implantado em nosso cérebro de tal forma que ninguém sabe ao menos o porque dele estar ali. Estou me referindo àquilo que chamarei neste texto de Tradição Alienada.

Tu deves estar te perguntando que diabos eu quero dizer com isto, não é mesmo? Senão, que bom, pois eu poderia encerrar este texto por aqui mesmo. Mas como suponho que nem todos necessitam ter tamanho poder de compreensão à primeira vista, explicarei o termo ao qual me refiro.

De todas as atividades humanas, provavelmente é na religião onde encontrarei os exemplos mais claros de tradição alienada.

Por motivos que não se sabe o porque, as pessoas fazem sinais da cruz ao passar na frente de uma igreja, ou então acreditam que não devem fazer mal porque tem um purgatório, um inferno, ou vários outros pretextos usados por diferentes religiões para tentar controlar o comportamento alheio como, por exemplo, se o único motivo para não matar o melhor amigo fosse o medo de ir pro inferno. Porém, pergunte pro crente mais fiel ou pro padre mais próximo o porque de todas essas crenças. Provavelmente ele lhe citará um texto decorado da bíblia como de costume, mas quanto mais suas dúvidas forem aumentando, menores serão as qualidades das respostas, até que se chegue há frase definitiva: “Deus le volt”, ou, “porque Deus quer assim”. Porém não sabemos de onde vêm todas estas crenças, e elas se espalham de forma descontrolada. De pai para filho elas sobrevivem, se adaptam e sofrem mudanças durante os tempos, assim como uma boa tradição alienada deve ser: boa o suficiente para acalmar aquele que quer ouvir as palavras que deseja e péssima para os céticos.

Já no mundo das artes, um amigo meu me abriu os olhos para um típico caso em que a tradição se sobrepõe ao pensamento autoral: todos já devem ter ouvido falar que Beethoven era um gênio da música, que Mozart também era genial, e essa informação passa diariamente de boca em boca e muita gente diz sem pestanejar: “cara, Beethoven é um gênio!”. Mas pergunte para uma dessas pessoas porque Beethoven é um gênio. Garanto que 9 em 10 pessoas que discursam firmemente sobre este assunto não saberão lhe responder o porque, exatamente por que apenas ouviu alguém falar sobre a genialidade de Beethoven e saiu proferindo como um profeta bêbado e desvairado um assunto que ele não tem domínio algum.

Não quero dizer com este texto que todas as tradições são más ou erradas, mas sim que devemos ter um pé atrás pra qualquer tipo de informação que assimilamos no dia-a-dia. Que se corra atrás da verdade. É necessário um pouco mais de questionamento e não apenas o “é assim por que tem que ser assim”.

Não há situação mais deplorável do que a constante decadência imposta por igrejas e demais grupos manipuladores que apenas empurram goela abaixo as suas pregações decadentes e supram a capacidade de pensar, a identidade e a personalidade das pessoas. Essas fábricas de robôs humanóides, porque já não sei mais se é possível chamar de humano aquele ser que já não tem mais a capacidade de pensar por si próprio.

Quando passamos a agir de acordo com tradições que não sabemos de onde vieram e passamos a criar hábitos que não sabemos para que servem deixamos de ser humanos, deixamos de ser ser pensante e perdemos aquilo que nos difere de uma máquina de produção em massa, que faz as tarefas que deve fazer todos os dias, porém, não sabe porque, pra quem e nem como faz aquilo, apenas faz, dia após dia, até que pare de funcionar e seja jogada fora para que outra máquina tome o seu lugar e mantenha a fábrica funcionando, afinal, fábricas precisam de dinheiro e máquinas que a façam lucrar, assim como igrejas, emissoras de tv, multinacionais, revistas e demais propagadoras de tradições alienadas em massa.